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quarta-feira, 21 de abril de 2010

Lugares públicos e pessoas privadas...

Estava lendo minha mais nova aquisição, a revista ffwMAG! #18, e me deparei com uma entrevista incrível com o sociólogo francês Henri-Pierre Jeudy. Não o conhecia até então, mas gostei muito do que li e vou procurar estudá-lo melhor. Mas enquanto isso não acontece, posto aqui para vocês a entrevista que, coincidência ou não, me apareceu no exato momento em que nossa cidade completa primaveras. Espero que gostem e convido-os a deixarem comentários sobre a reportagem.

(Peço desculpas pelos erros de digitação e rezo para que a revista não me processe.)


"Para o sociólogo francês Henri-Pierre Jeudy, professor de estética da Escola de Arquitetura de Paris-Villemin, a revitalização dos centros históricos das cidades expulsa as populações originais e transforma as cidades em cenários meramente turísticos."
Por Daniel Cariello, de Paris.



"Justificada pelas melhorias em infraestrutura e segurança e pelo embelezamento que traria às cidades, a revitalização dos centros históricos é normalmente um assunto que recebe mais opiniões a favor do que contra. Governos e prefeituras adotam o mesmo discurso de como é importante renovar não apenas os prédios e monumentos, mas também a vida desses lugares.
No entanto, há ao menos uma voz dissonante nessa questão; Sociólogo do CNRS - Centre National de la Recherche Scientifique -, professor de estética na Escola de Arquitetura de Varis-Villemin e autor de livros como O Espelho das Cidades e O Corpo como Objeto de Arte, o francês Henri-Pierre Jeudy afirma que esse processo, normalmente feito segundo normas de intervenção internacionais, tem por fim a atração do turismo. Em conseqüência, expulsa as populações antigas para a periferia, "clareia" as memórias originais desses centros e transforma as cidades em museus.
Em seu apartamento situado no coração de Paris, ao lado do Les Halles, um antigo mercado de rua transformado no anos 1970 em polêmico shopping center, Jeudy concedeu entrevista exclusiva para ffwMAG!.


ffwMAG! - De onde vem a necessidade humana de preservação?
HPJ - Eu acredito que essa obsessão da conservação vem de uma angústia do futuro. Há esse impulso coletivo de preservação em pessoas de todos os países. Existe um olhar sobre o passado que pode ser interpretado como uma negação do presente. E essa valorização o passado é explicada pelo fato de ele transmitir uma imagem estereotipada da continuidade das coisas. Quando vemos uma cidade como São Paulo, que muda sem parar, há um medo da falta dessa continuidade temporal, necessária humanamente.

ffwMAG! - Para justificar a renovação dos centros históricos, fala-se em preservação da memória. Mas não dizem qual é e por que devemos conservá-la. Qual memória é preservada nesse caso?
HPJ - A conservação monumental é normalmente justificada como uma proteção das memórias coletivas de uma nação. Eu não concordo com isso, penso que há uma contradição entre conservação e memória. A primeira é feita com um espírito de preservação de objetos e lugares, com uma grande carga simbólica, o monumento. Mas a memória é móvel, é algo não material na cabeça das pessoas. A priori, não há dela uma representação territorial ou monumental. E a conservação é uma maneira de infligir certa ordem nas memórias coletivas. Acontece que isso gera conflitos, pois sempre há um jogo de valorizar certo lugares e ao mesmo tempo esconder as feridas. Há uma dominante política na gestão dessas memórias, que se satisfaz com a preservação de monumentos consensuais.

ffwMAG! - Quanto à isso, Nietzsche dizia que a fixação da memória, a submissão à história, é paralisante. Então não devemos fazer nenhum esforço de preservação?
HPJ - Nietzsche fazia uma apologia do esquecimento. O espírito de preservação que temos é exatamente o contrário disso. Para ele, a memória só existe porque há também o esquecimento, a garantia do que ele chamava de 'inocência do devir'. É uma bonita expressão. Ele não defende a petrificação da história. A memória é móvel e suas ocultações são necessárias para podermos viver no tempo presente. No mundo contemporâneo, essa posição parece moralmente insustentável, porque hoje o politicamente correto é o chamado dever de memória. Se não o temos, de certa forma não somos bons cidadãos.

ffwMAG! - Mas esse é um pensamento muito ocidental. No Japão, por exemplo, as tradições são conservadas, não os movimentos.
HPJ - Não existe a palavra 'patrimônio' na língua japonesa, mas após a Segunda Guerra Mundial o país foi obrigado pela ONU a entrar em uma mentalidade de conservação. A carcaça de uma cúpula em Hiroshima foi a primeira construção consagrada patrimônio histórico da humanidade naquela país, em memória à bomba. Os japoneses são cuidadosos na transmissão das tradições, lá existem personagens conhecidos como 'tesouros vivos', pessoas com uma sabedoria excepcional. Mas não há o lado monumental. Há cada vinte anos os templos são reconstruídos, exatamente como eram antes. Eles não possuem a preocupação de autenticidade, como na Europa.

ffwMAG! - Quando Jordi Borja foi vice-prefeito de Barcelona, desenvolveu um modelo de revitalização dos centros urbanos. Em seguida, vendeu a idéia para o mundo inteiro, como se vende um Big Mac. Não há espaço para modelos adaptados para cada cidade?
HPJ - É verdade, há uma uniformização. Quando eu estudava esse assunto, ficava impressionado como os pictogramas que indicam as cidades históricas francesas, fosse Tolouse ou Marseille, pareciam sempre os mesmos. Os centros desses lugares também são parecidos. Cada cidade tem seus monumentos, mas as maneiras de valorizá-los são equivalentes. As vezes as indústrias abandonadas são o mais interessante em uma conservação. Quando os prefeitos das cidades conseguem sair um pouco dessa dimensão do passado, há arquitetos que fazem um ótimo trabalho, combinando memória e concepção arquitetônica moderna. Eu vi um bom exemplo disso em um dos Sescs de São Paulo. Mas é algo que dificilmente poderia ser feito, por exemplo, em uma catedral ou em um castelo da Idade Média. No entanto, em Berlim há tentativas nesse sentido. A cúpula de Norman Foster no Reichstag dá uma impressão de ficção, de uma arquitetura do ano de 2500. A leveza do vidro equilibra o peso, o sentido colossal do Reichstag.

ffwMAG! - No Brasil, esse tipo de processo de renovação mudou completamente o centro de Salvador, e agora vem mudando a Lapa, no Rio.
HPJ - Já visitei Salvador diversas vezes, antes e depois da renovação do Pelourinho, e o centro foi completamente reestruturado, não se encontra mais a vida que havia. Foi feito um verdadeiro lifting. Virou algo completamente kitsch, voltado para o turismo. Mesmo as gordas baianas são folclorizadas. As populações que moravam lá foram expulsas para as periferias e as memórias da vida que havia antes foram junto. Esse excesso produziu uma auto-caricatura do lugar. O interessante é que agora há traços de decomposição aparecendo, pinturas descascando, como se a Salvador que existia anteriormente retomasse seu lugar. Já a Lapa é um pouco diferente. Eu trabalhei com uma brasileira e fizemos uma comparação com Belleville [bairro tradicional e popular de Paris]. Nesses lugares, há uma vida artística e cultural intensa, mas não é produzida por diretrizes municipais, não é feita para turistas.

ffwMAG! - Será que o modelo de cidades centralizadas é realmente o mais adequado?
HPJ - Essa é uma boa questão. Nas cidades genéricas de Rem Koolhaas, não existe centro. Roland Barthes afirmava que em Tóquio também não há. Em que medida ele será essencial na concepção das cidades do século XXI, ou será que devemos multiplicá-los, como defendem alguns arquitetos? Essa centralização é um pensamento muito europeu, completamente ligado à história de nossas cidades. Paris e Praga são exemplos típicos. Talvez Londres e Berlim sejam menos.

ffwMAG! - Claude Lévi-Strauss disse em Tristes Trópicos que 'a passagem doa séculos representa uma promoção para as cidades européias. Para as americanas, a simples passagem dos anos é uma degradação.' Isso significa que a preservação é um processo mais natural na Europa do que nas Américas?
HPJ - Não sei se concordo com essa frase. Mas é verdade que em várias cidades americanas, inclusive brasileiras, não há uma densidade história, ao contrário da Europa. Eu não sei se as pessoas que andam por Paris ou Roma imaginam todos os vestígios que há no subsolo, o acúmulo de história. Não é de se estranhar que Freud tenha escolhido Roma como símbolo da metáfora do inconsciente. Por isso é normal que na Europa a conservação pareça mais natural, mas a questão é se é realmente possível naturalizar esse espírito de preservação. Eu não tenho certeza que sim. Ela é mais lógica, verdade, pois a cidade já está lá. Mas também são interessantes as cidades construídas ex nihilo, à partir do nada. E o mais belo exemplo do século XX é Brasília. Lúcio Costa desenhou um avião em um pedaço de papel e ganhou o concurso contra diversas agências que trabalharam duro, fizeram plantas. Talvez eu exagere, mas ele fez uma cidade ex nihilo, cuja história começa com sua fundação, de um dia para o outro. Rem Koolhaas também tem essa concepção de construção global de uma cidade. Eu nunca fui à Brasília, mas acredito que se a gente mora lá e chega de repente a Paris tem uma impressão totalmente anacrônica, como se fosse um filme dos 1930.

ffwMAG! - Com esse lifting das cidades, acaba havendo uma unificação cultural. O que vai acontecer com as diferenças, as tradições, os dialetos?
HPJ - O que acontece é o mesmo processo ocorrido com essas falsas baianas. É assim por todos os lugares, com essa uniformização, mas isso também é possível fora dos centros das cidades. Tudo o que significa diferença cultural é folclorizado, vira artefato. Produzimos simulacros de uma diferença cultural com fins de turismo. Nos centros das cidades, a impressão é a de que os artesãos, os donos de restaurantes, todos, atuam em uma peça de teatro, são pagos como instrumentos do patrimônio. Em geral, as diferenças culturais das cidades ocorrem no jogo da confrontação entre hostilidade e hospitalidade, e nesses casos a confrontação desaparece. Há uma cidade que costumo visitar no verão, e nas lavanderias públicas de rua, onde antes havia mulheres que realmente lavavam suas peças, agora há bonecos em tamanho natural. No campo francês, há essa situação estranha, uma disneyworldização geral. Perpignon é talvez a última cidade francesa que ainda não passou por isso. Ainda há ciganos que moram no centro. Em Montpellier também havia há cerca de vinte anos, mas eles foram retirados de lá. O fenômeno hoje é que, se ainda há resistências, eles são o exato espelho do sistema de patrimonialização. Não produzem nenhuma ruptura, mas sim os efeitos de algo que acho muito triste, o comunitarismo. São as defesas de uma identidade, mas uma identidade não se defende, ela se exprime. Os catalães agora fazem seus seminários e colóquios em catalão, e não mais em espanhol. Isso é puro comunitarismo.

ffwMAG! - Mas de certa forma é normal. A cultura e a língua espanholas foram impostas a eles. Agora é a volta do bumerangue.
HPJ - Concordo. O problema é que o mecanismo patrimonial é feito de tal maneira que ele mesmo responde ao sistema. As reivindicações no fundo são patrimoniais, para salvar por exemplo as memórias dos armênios instalados em Paris.

ffwMAG! - O senhor fala muito dos espaços urbanos mas também dos espaços pessoais, como quando escreve sobre a interdição do fumo em lugares públicos. A nossa liberdade, nosso espaço, está cada vez mais restrito?
HPJ - Se pegamos a noção de espaço público, que mudou muito, agora há uma espécie de tirania para podermos usufruir dele. E não apenas no caso do tabaco. Em nome do aquecimento do planeta, há uma série de medidas tomadas, justificáveis e legitimadas pela ciência ou pela medicina. É por isso que hoje a moral é penível, ela tem sempre razão. Se fumarmos, vamos morrer. E isso se torna insuportável, pois a moral não se justifica por si só. Quando eu era jovem e havia a moral cristã, podíamos transgredi-la. Mas agora não podemos mais, pois ela é científica, sanitária, tem suas razões precisas. Todas as interdições nos espaços públicos são legitimadas pela idéia de que 'fazemos isso para o seu bem'. Então só precisamos obedece-las para vivermos mais. Isso gera situações como vimos nos cafés, em pleno inverno. A mais gente do lado de fora, fumando, do que do lado de dentro. É bizarro."

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