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quinta-feira, 3 de junho de 2010

Apagando as velinhas: Brasília que me aguarda

Xico Chaves. Olhos na Justiça. 1992. foto por Arnaldo Lobato.
É no mínimo curioso que as comemorações dos cinqüenta anos de Brasília tenham se dado em conjunto com uma crise política sem precedentes em sua breve história. De fato, a conturbação nas arenas do poder público ameaçou minguar a festa: Brasília se veria obrigada a alegar sua inocência, se dizer sem culpa (ou, em outras palavras, se des-culpar), e contentar-se com uma comemoração um tanto acanhada. Mas não foi o que presenciamos.
Brasília chega aos cinqüenta anos sentindo falta de si mesma. Tantas vezes nos parece que os espaços amplos de Brasília são um convite para as nostalgias. A saudade parece redimir nossa própria ignorância (Perdoem o clichê, mas o bom brasiliense insiste “nessa saudade (...) de tudo que eu ainda não vi”).
As comemorações, mais do que meramente oficiosas e formais, surpreendem-nos com uma afetividade assombrosa, da qual encontramos ecos nas comemorações da Funarte, nas mostras do CCBB, CAIXA Cultural, e tantas outras. Muito se repete nas cartilhas o ímpeto de mostrar ao mundo (e a si mesmo) um Brasil moderno, integrado e desenvolvido, arrojado e audaz, alicerçado em novos preceitos arquitetônicos e urbanísticos e movido ao carisma progressista de Juscelino, enquanto, marginalmente, tecido pela maciça força de trabalho candanga. Pouco se ouve, no entanto, do grupo Cabeças, do Ex-Cultura, dos salões do MAB, da proposta do Cresça, das publicações da Arte Futura e CIA, das oficinas da 508, da Bric-a-Braque, da geração do mimeógrafo ou da poesia marginal, do açougue cultural T-Bone, do Boi do seu Teodoro, de Dulcina de Morais, do projeto de Anísio Teixeira, do Clube do Choro e do Detrito Federal. Felizmente os nomes são tantos; infelizmente o des-conhecimento é imenso.
A produção artística em Brasília parece caminhar entre certo inconformismo frente à formatação e ordenação social, espacial e política da cidade, uma solidão tenaz frente ao espetáculo de seu céu liberto e um furor quase pueril frente a uma cidade por se construir. Todo artista em Brasília é de certo modo um pioneiro, e, em alguns casos, porque não, um candango.
Brasília epopéica e espetacular tem seu lugar cativo nas escolas, academias e livros. Brasília, produtora de cultura e reflexão, espaço de experiências afetivas, essa é preterida pela mídia e desconhecida sumariamente pelo repertório didático.
Nesse sentido, vale destacar exposições como Brasília, síntese das artes (CCBB) e Arquivo Brasília: cidade imaginário (Espaço Cultural Marcantônio Vilaça), como mapeamentos e construções de memórias afetivas que se enlaçam a partir da produção cultural local.
No caso da primeira, talvez o grande mérito da exposição, habilmente orquestrada por Denise Mattar, seja evitar os clichês e obviedades acerca de Brasília. Enquanto resgata diversos elementos de sua história e itinerário estético, traz, a partir de um grupo de artistas atuantes na capital, a construção de um repertório local, mediante a uma peculiar relação com a paisagem e uma espécie de topologia irônica. Brasília como síntese, como ponto de junção, de encontro e confluência; sintética como diríamos de algo produzido pelo engenho humano e não por um capricho naturante.
No entanto, devemos destacar o espaço destinado ao curso de Artes da Universidade de Brasília e sua relevância no panorama artístico da cidade. A passagem do ICA ao IdA é particularmente tocante para aqueles que, como eu, certamente reconhecem ali sua própria genealogia. Percebe-se uma vocação para a experimentação, nesse cenário inusitado, não apenas pela promoção de encontros de proposta e tendências diversas (por vezes divergentes), mas pelo privilégio de habitar um espaço em construção, sem tradições que não certa intenção moderna. Nesse sentido, concluir o percurso com as passagens de João Angelini, como esse deslocamento ininterrupto e lúdico, é de certa forma não concluir; somos Angelus-Novus... Aguardamos impertinentes os escombros que virão...
De modo análogo, a exposição Arquivo Imaginário, começa mostrando ao que veio: no centro temos a imagem hoje emblemática do cruzamento dos dois eixos; realização do traço apropriador imaginado por Lucio Costa e futura zona de convergência da cidade. A fotografia, realizada por um pouco reconhecido Mário Fontenelle (vide as velinhas de Luciana Ribeiro) provavelmente constitui não apenas um dos primeiros e mais emblemáticos registros históricos da nova capital, mas, no contexto da exposição, é certamente um dos primeiros olhares estéticos tendo Brasília como tema. Fontenelle, que, muito provavelmente, naquele momento tinha proximidade maior ou igual com a aviação do que com o próprio ofício de fotógrafo, soube tirar proveito de seu conhecimento e oportunamente direcionar o piloto a posicionar a aeronave de modo a produzir a antológica imagem. Pois, vejam só, Brasília, como essa imagem, antes de ser uma civitas planejada e ordenada é uma cidade “oportunista”. Foi à oportunidade anedótica que fez dela uma meta do governo JK; por outra, Lucio Costa enviou seu projeto, e incontáveis outros fizeram de Brasília o que ela é hoje; cada candango conta-nos uma história de oportunidades, por vezes casuais, que aqui o trouxeram. De fato, não há forma melhor de começar nosso arquivo imaginário e imagético da cidade do que prestando mérito para aquele que será, sem dúvida, o primeiro artista da cidade.
A partir daí, a história das artes de Brasília acelera-se em passos largos. Grupo Cabeças, Vladimir Carvalho, Nicolas Behr, Ex-cultura, Ralf Gehre Ghere, Bené Fontelles; todos confluem em uma imagem (obviamente, como a de Fontenelle, ampla, panorâmica, abrangente, embora claramente meticulosa em seu enquadramento). São a história de Brasília, marcada por uma postura política e um humor cítrico: seco como a própria capital, astuto e mordaz como se esperaria de uma cidade fundada sobre a promessa de uma nova organização social. Somos apresentados a história estética e poética de Brasília.
Conforme vamos circulando, encontramos nossos conhecidos. Em algum momento do percurso, todo aquele que tem uma aproximação com as artes visuais em Brasília encontrará seus pares, e aí a exposição parece ganhar uma nova profundidade aos nossos olhos; porque a nossa história e a história da cidade parecem entrercruzar-se. Vejo as performances de Polyanna Morgana e sou remetido ao impacto que aquela produção teve em mim como estudante; vejo as evidências estranhamente longínquas do grupo Amostra Grátis e sou remetido às aqueles frascos doutros tempos; vejo o grupo Entorno e lembro-me das pessoas que conheci e das conversas fantásticas que advieram de ações do grupo; Marta Penner me remete a meus primeiros momentos como mediador, Gê Orthof a seu universo em suspensão, tão leve e ao mesmo tempo tão denso; “Deus não existe, Jesus não voltará”, assim, um tanto incompleta sem a mancha que buscava suprimi-la. Os tempos confabulam. Chego a Catedral Rosa e converto-me em testemunha ocular de meu tempo. Converto-me em mais uma memória, zanzando entre os corredores, fragmentada pelos cobogós. Aqui, não um fim, mas um convite, como aquele que pareceu outrora irrecusável para Lucio Costa, para Fontenelle, Nicolas Behr, Polyanna Morgana, Rodrigo Paglieri e todos os outros: se apropriar de Brasília.
Eis a Brasília que nos aguarda.

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