Iniciamos um novo projeto no blog: essa é a primeira de uma série de entrevista que desejamos postar com certa regularidade.
Já em nossa estréia tivemos que editar a entrevista (que continua relativamente extensa) para o blog, mas disponibilizamos uma versão mais completa em PDF, no link abaixo, para os interessados.
http://www.4shared.com/file/104599271/2cc65e37/Microsoft_Word_-_entrevista20paulo20versC3A3o20editada_I1.html
Apresentamos a seguir alguns trechos da entrevista realizada pelo Dando Nome aos Bois com Paulo Faria em maio de 2009 a respeito de sua produção poética e de suas questões de interesse.
Equipe DNB.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la (...)
Antônio Cícero
A produção recente de Paulo Faria apresenta-se como um exercício constante de resgatar memórias e reconfigurá-las em invólucros construídos especialmente para elas – livros, caixas, relicários... Esta prática delicada de captura de momentos tênues, por vezes apenas lapsos imagéticos pescados em uma tarde, surge como um movimento inverso ao ciclo da cigarra, um dos motivadores centrais de sua pesquisa poética.
Porém, se o ciclo da cigarra direciona-se para fora, submergindo da terra e de sua própria carapaça, a produção de Paulo propõe-se enquanto movimento de introspecção, remontando suas lembranças de forma sutil e jogando com a nebulosidade e a imprecisão características dessa reconstrução.
Certamente, este exercício incerto de envolver algo fugidio como uma memória de chuva anuncia, de antemão, certo fracasso, já que tentar apreender e guardar uma parte revela a impossibilidade de reter o todo. Porém, quando o colecionador de memórias em questão sabe que só pode possuir versões, construções ficcionais carregadas de fantasias, expectativas e sensações sobre elas, o fracasso subvertesse em exercício de desapego. Neste sentido, Paulo Faria nos mostra que ver é necessariamente acreditar nessa produção ficcional de imagens formada por uma junção do que sou e do que o mundo me apresenta. Por sua vez, a produção poética constitui-se como esta versão particular que, ao ser lançada ao mundo, será novamente reconfigurada por outros olhares e suas cicatrizes ¹.
¹ “(...) pois todo olhar sobre a obra é um olhar com cicatrizes”. (PANITZ, 2001. P.41).
Luciana Paiva
Idade: 27 anos – Anápolis, Goiás
Em Brasília, devemos ficar atentos a obra de: Ralph Ghere.
DNB- Sua produção começou inicialmente com o desenho, você ficou à frente de um grupo de estudo sobre o assunto por anos e trabalhou muito tempo com ilustração. Você se considera ainda hoje um desenhista?
Paulo- Eu me considero um desenhista. Acho que é o jeito que eu sei lidar com as imagens; meu jeito de operar e construir imagem é bem ligado com a forma com a qual eu penso o desenho. Então, mesmo quando eu não faço o que tradicionalmente seria considerado desenho, ele ainda está presente. No último ano talvez eu tenha conseguido pensar coisas fora do desenho... mas, como eu não concretizei nenhuma... (risos)
(In)versões da Paisagem , 2008.
Paulo- O desenho, para mim, constitui um jeito de construir a imagens; talvez ele até possa ser definido pelo resultado final, mas eu penso o desenho muito mais como processual; minha forma de perceber o desenho está relacionada a um processo e como ele tem uma relação imediata com meu pensamento. (...) Eu construí a minha percepção á partir do desenho. Então, trabalhos como, por exemplo, em que eu scaneava o corpo (...) eu defendi que aquilo era desenho porque tinha a ver com uma relação tonal. Depois que eu tenho a figura scnaeada, quando estou trabalhando com os contrastes, eu estou tomando decisões que eu tomo quando estou desenhando: se eu quero mais preto, se eu quero menos preto, se eu quero mais tons, se eu quero menos, se aquela imagem é mais ou menos gráfica (...). Mesmo em Memórias de Chuva, quando eu cubro a imagem, aquilo tem a ver com o esfumatto muito mais do que com o pontilhismo. É como quando eu faço um desenho em um suporte poroso com um carvão, quando eu estou usando um material que é difuso. (...) Tem aquele texto, o Linear e o Pictórico [Heinrich Wölfflin], em que o linear é associado ao desenho, e o pictórico a pintura... não tem nada a ver, porque tem muitos desenhos que tem uma espessura, uma ambiência, e você consegue isso com determinados processos e materiais tradicionais. Quando eu falo que [o desenho] tem muito mais a ver com o processo, é nesse sentido: muito mais com o modo de operar a imagem do que o resultado. Quando eu falo que eu sou desenhista, é porque meu olhar foi construído, porque é para isso que eu olho, para isso que eu mais olhei até hoje. Tem a ver com a linha, as qualidades da linhas, mas ,eu, por exemplo, chamo a aquarela de desenho (...) não se fala: “seria pintura?seria desenho? “. Acho que isso nem é uma questão... para mim, eu chamo de desenho, porquê... (pausa)
DNB – Porque vai morar no papel?
Paulo- Tem essa coisa desse lugar cativo do desenho... e porque tem essa questão da transparência. Eu chamo o nanquim aguado de desenho; então, como eu estou trabalhando com camadas e transparências, eu chamo isso de desenho também.
DNB- Como a temática da memória surgiu em seu trabalho?
Paulo- Na realidade ela surgiu como uma demanda. Me pediram para fazer um trabalho para uma exposição chamada Afetos Roubados no Tempo, e eu fiz as caixas. Essa coisa da arte por demanda é a síndrome do ilustrador: você vai lá, te encomendam um trabalho... você desenha e pronto... Artista que não está produzindo só trabalha por demanda. Não que o ilustrador só desenhe assim, mas é porque tem a coisa do contrato, a pessoa te pede um trabalho...
DNB- mas essa demanda pode ser uma provocação...
Paulo- Pode ser uma provocação... claro. (...) Seria mais legal se fosse, mas no meu caso não foi não, foi uma demanda mesmo. Não havia uma produção, não havia um enfrentamento (...). Essa coisa de ser artista tinha mais a ver com o curso que eu estava fazendo do que um procedimento. Não havia isso de estar sempre pensando o próprio trabalho, de estar envolvido. Aí, me chamaram para participar dessa super coletiva, e eu fui provocado por essa idéia. E na época eu estava impedido de andar... estava machucado. Essas duas coisas vieram juntas, por que a questão não é só trabalhar sobre demanda, mas, mesmo sob demanda, que tipo de envolvimento eu vou ter com esse trabalho. Eu tive muito tempo ocioso, recluso, para pensar, pesquisar... mesmo que fosse tudo muito rápido (e essas coisas geralmente são muito rápidas), digamos que eu tivesse quinze dias, mas eram quinze dias inteiros! Não tinha outra coisa para fazer, não tinha que dar 40 horas de aula, e acho que isso me envolveu, e eu comecei a mergulhar. Talvez, o que eu disse sobre a ilustração e a demanda tenha a ver com isso; quando somos provocados, depois de termos respondido a provocação, há uma chance que aquilo persista, ao menos como um assunto. Na ilustração não tem muito disso... você terminou um trabalho, você está pronto para o próximo. Acabou, concluído. E dessa vez não, eu terminei, entreguei... mas estava no meio de um processo, sem saber se eu faria o mestrado ou não,(...) e como isso já tinha me tocado, resolvi fazer o mestrado sobre isso.
A memória surgiu então á partir dessa questão do tempo, do acesso... isso fica guardado aonde? Reli o texto do [Gaston] Bachelard “gavetas, cofres e armários”, por que eu fiz uma caixa e havia uma relação da caixa como o lugar do segredo . Tudo isso pode parecer uma série de sincronicidades, mas não é. É um aprofundamento. Essas coisas começaram a vir e eu a pesquisar, comecei a querer falar sobre o tempo. Logo descobri que o que me interessava no tempo era principalmente o aspecto da memória, e isso impregnou todo o trabalho. Mais do que a memória... Meu trabalho, mais do que um elogio a memória, é um elogio ao esquecimento. Tem mais a ver com a inapreensão do que com aquilo que eu retenho.
Paulo- As cigarras surgiram quando eu fiz um trabalho na disciplina de Materiais em arte, no meu segundo semestre de graduação com o Carlos Ferreira, professor na ocasião. (...) Depois, isso voltou.
Nessa história de ficar sentado na cama, recluso, no começo da primavera, em setembro, (...) As cigarras estavam cantando muito. Era como uma paisagem sonora que invade o apartamento, que invade o quarto, eu não tinha muita opção (seria muita anestesia não me tocar por isso); Eu estava lá: a mercê disso, exposto, uma exposição contra a minha vontade... isso me afetou e eu me lembrei de umas coisas da infâncias (e eu não sei mais o quanto isso é inventado e o quanto isso é factual, [...] mas, para mim, o que é inventado também é factual [...]). Lembrei de uma situação em que eu vi a chuva chegar... e eu lembro que teve um momento sonoro muito forte, e que eu tive a sensação de que as árvores estavam emitindo esse som (eu era muito novo, eu não identificava que essa relação sonora era de um inseto... eu não sabia... devia ter um cinco, seis anos, sei lá; apesar de muitos meninos de 5 ou 6 anos saberem disso, eu não sabia não [risos]). Isso ocorreu em Pires do Rio, e (Brasília também era assim, podia ter sido aqui) havia uns quarteirões que não tinham sido construídos, nos quais os meninos brincavam de polícia e ladrão, de pique-pega. Eu tinha uns bonequinhos do He-man ( já estava propício, eu já estava inventando histórias com os bonequinhos),e vi a chuva chegar, eu vi essa coisa que não tem fronteira – você na chuva não imagina que ela tenha uma fronteira-, e, de repente, eu vi essa fronteira chegando, se aproximando. Fiquei muito impressionado com isso e associei a esse som.
Muito tempo mais tarde (meses, anos, eu não sei bem...) meu pai me falou aquela história da cigarra que todo mundo conta: que ela canta até estourar, e que é ela que faz esse barulho... – putz, estragou tudo!(risos)- mas não, ficou essa relação da cigarra, da árvore, da chuva. E aí, quando eu vi a chuva chegando aqui (foi na primeira vez que o Marcelo me levou para andar de cadeira de rodas); eu estava lá sentado, vi a chuva chegando, as cigarras cantando, e eu comecei a chorar. Foi um momento catártico, me tocou profundamente mesmo. Eu só fui pensar nessas coisas muito depois. E aí, eu estava no meio da pesquisa da caixinha. Eu já sabia que eu ia colocar lá dentro uma memória afetiva, mas o quê? Eu recolhi as exúviazinhas e junto com elas, uma fava aberta de árvore. Essa é a história de uma imagem silenciosa que me remete a uma sensação sonora. Ela era cheia de ranhuras e reentrâncias, e eu achei aquilo muito musical. Coloquei-a na parte de cima da caixinha e dentro três cigarras. Comecei , então, a pensar nessa possibilidade da cigarra como elemento poético, como ponto de partida. Pode parecer até meio ingrato da minha parte, mas eu acho que resolvi essas questões da cigarra. Sou muito grato a cigarra. Embora eu tenha eventualmente descoberto que ela não era a minha questão, ela me abriu possibilidades de pensar várias outras coisas.
DNB- As imagens esquecem? Podemos aprender a esquecer com elas?
Paulo- Esquecem; devemos aprender com elas... Lembro-me do Funes [personagem do conto Funes, o Memorioso, de Jorge Luís Borges], a história de uma dádiva que se torna uma maldição; Funes consegue falar em seis línguas e lembrar de todas coisas, mas, Borges nos pergunta sutilmente, ele seria capaz de pensar? Acho que o esquecimento é a capacidade da reinvenção... e a imagem tem isso.
diário de chuva - Áereo, 2008
3 comentários:
Parabéns pela entrevista!
Essa exposição de mestrado dele foi extremamente interessante. Tive a oportunidade de conhece-la com ele a apresentando pessoalmente.
Até mais :D
Sou jornalista, gostaria de ter o email do Paulo Faria. avila.cristina@gmail.com Obrigada. Cristina Ávila
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