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quinta-feira, 11 de junho de 2009

ALL

Brasília está (mais do que bem) respresentada no evento Energias da Arte pela instalção ALL de Luciana Paiva. Aproveitando a ocasião do lançamento/abertura, seguem-se algumas linhas sobre a obra.



FALL
por Matias Monteiro



I want to do a piece where I go to the alps and talk to a mountain.
The mountain will talk of things which are necessary and always true,
and I shall talk of things which are sometimes, accidentally true.
Bas Jan Ader



Quando criança, um velho livro de astronomia fora o suficiente: Decidi, aos 7 anos que queria ser astrônomo. Poderiam me perguntar “porque não astronauta ?” (algum inquisidor de clichês pueris sem dúvida o faria, caso eu não tivesse tomado a precaução de, pela maior parte, manter minha convicção secreta). Ora, o espaço parecia-me muito hostil e, certamente, continha distâncias muito tediosas; além disso, um astrônomo razoavelmente aparelhado seria capaz, com seus dois pés fincados no chão, de contemplar aquilo que um astronauta jamais experimentaria. Com um simples folhear de páginas, eu estava nos grandes planetas gasosos de nosso sistema solar, nas superfícies rochosas e acidentadas dos asteróides, no luminescente rastro de um cometa apressado. Abandonava-me confortavelmente em uma poltrona reclinada no planetário e estava pronto para realizar minhas explorações intergalácticas. Embora houvesse empecilhos de ordem cognitiva naquele momento (por mais que tentasse não parecia ser capaz de conceber o infinito, dificuldade que, eu imaginava, seria resolvida a seu tempo), eu estava decidido: Sim, seria um astrônomo, poderia ver o cosmos, e isso me bastaria.
Pois, vejam vocês, para algumas crianças ver já basta. Os corpos celestes enviavam-me solícitos sua imagem, desejavam ser vistos, eram verdadeiros exibicionistas. O mundo está desperto para a intelecção pueril; anima-se mediante a visão da criança por saber que “nenhum aspecto da vida [lhe] é indiferente”[1]. Devemos aprender a bailar con las cosas[2] ou, ao menos a jogar com elas[3].Obviamente o desejo de ser astrônomo não se concretizou (resta ainda um interesse amador, como um deslumbre e um encantamento nostálgico), mas, o desejo de ver, esse permaneceu; e um dia eu descobri que minha vocação era a de ser um observador, um apreciador e, nos casos mais radicais, um fruidor.
Talvez nada disso seja necessário para escrever algumas poucas linhas sobre a instalação All, de Luciana Paiva. Mas no campo das artes não tratamos de necessidades, mas, como argumenta Merleau Ponty[4], de urgências. Foi mediante a esse olhar, instruído pelos grandes eventos astronômicos, que eu vi a obra em questão.
A montagem pareceu-me excepcionalmente simples (e, portanto, podemos supor que envolva um processo rigorosamente complexo, pois, assim costuma ocorrer com as coisas que nos parecem simples); uma instalação modular diretamente realizada sobre a parede de uma sala em penumbra. Essa formatação (módulo sobre parede) parece ser a tônica dominante da obra de Luciana Paiva, ao menos de suas obras mais recentes. Em 2008 realizou duas instalações com soluções bastante próximas: Quando criança, eu fugi e Pequenas distâncias. Não apenas essas três obras compartilham apresentações análogas, também é possível através delas perceber uma sutil mudança no foco de interesse da artista no que concerne um de seus temas recorrentes: o uso da palavra escrita.
Se Quando criança, eu fugi é formada por um jogo associativo de palavras (ao modo surrealista), Pequenas distâncias apresenta-nos grafismos secretos que se sugerem como ideogramas, criptografias, símbolos matemáticos, etc., para, por fim, revelarem-se como inscritos em um processo narrativo. Em All a palavra não está mais apresentada (a não ser pelo alusivo e sutil título da obra). Luciana parece de certo modo se desvencilhar da palavra como registro escrito para abordar, então, a linguagem como estrutura. O que está em questão em All é essa composição (poderíamos dizê-la melódica) que se revela na repetição e alternância de padrões, no exercício de uma insignificância (ou uma insignificação) que lhe é própria.
As dezenas de pequenos papéis laminados, dispostos de forma tão delicada sobre a parede, encobrindo (ou eclipsando) minúsculas fontes luminosas, possui uma singeleza rudimentar: Percebemos seus fios, seus apoios, as pequenas fissuras na finíssima película metálica. Luciana convida-nos, assim, a uma poética da precariedade, da banalidade.
Depois de algum tempo de observação cuidadosa, identifica-se essa nebulosa metálica como sendo composta de pequenas embalagens de bombom cuidadosamente abertas e desamarrotadas (não outro senão o chocolate Alpino, com sua superfície dourada e seu pequeno monte omitidos contra a parede; uma clara alusão ao desejo de ascensão e os riscos da vertigem). O universo (aquele que realmente vale a pena ser visto) pode ser obtido das formas mais simples: velhas impressões em um livro antigo nos fazem astrônomos, algumas bolas de isopor já bastam para que o estudante prodigioso simule as elipses planetárias. Por vezes o encantamento da simplicidade nos passa despercebido frente a nossa eterna expectativa pelo espetáculo. Amar um material descartado, viver em suas imperfeições é um procedimento extremamente afetuoso e difícil de exercitar. Por vezes o finíssimo metal parece demasiado áspero a nosso olhar domesticado.
Luciana propõe-nos que exercitemos essa capacidade de sonhar; revela-nos que “Uma série de olhares poderia ser tão sólida quanto qualquer coisa ou lugar (....)”[5]. Devolve-nos essa capacidade (tão valorizada por Baudelaire) de surpreendermos com o cotidiano e com o banal; e de ver estrelas, aonde quer que elas apareçam.


Brasília, 2009.

[1] BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade. 2007. p. 20.
[2] Lama TSULTRIM em Conferência realizada em Brasília em 15/12/2008.
[3]En el reino de las cosas el niño viene a ser una cosa más, que juega con ellas. El hombre no. El hombre es el amo que dice al objeto:‘іYo te pongo aquí!’. En cambio, en el juego del niño, es el objeto el que ruega: ‘Ponme aquí”. ZAFFARONI, Raúl. Apud: PELUFFO, Gabriel. Em: PORTER, Liliana: 2003. p. 169.
[4] MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. 2004. p. 15.
[5] SMITHSON, Robert. Em: CONTRIM, Cecília, FERREIRA, Glória (org), p196.